O Conde D'Abranhos
Romance de Eça de Queirós, publicado postumamente (1925), onde o autor traça uma crítica, sempre atual, aos políticos portugueses.
O romance apresenta-se como uma espécie de biografia de Alípio Abranhos, redigida pelo seu secretário, Z. Zagalo, que numa carta dirigida à viúva «Ex.ma Sr.ª Condessa d'Abranhos», carta essa que contextualiza as «notas biográficas» que compõem o livro, se assume como um grande conhecedor do falecido.
Num tom afetado, excessivamente elogioso do Conde, Zagalo traça o retrato do «nobre estadista», pensando que lhe está a fazer um elogio póstumo, mas acabando por pôr a nu, involuntariamente, a falta de caráter, a vileza, a hipocrisia e a ignorância do bacharel, deputado e, finalmente, Ministro da Marinha, Alípio Abranhos: «Este estudo não é propriamente uma biografia em que deva seguir, ano a ano, a carreira intelectual do seu vasto espírito. São simples apontamentos, quadros destacados de uma nobre carreira, que servirão para que um mais alto engenho (...) reconstrua, com suficiente relevo, esta soberba figura histórica». (pág. 32).
O verdadeiro caráter do Conde é revelado em inúmeros episódios que dão conta de atitudes nada nobres:
- a repulsa pela família, por ser pobre e sem formação - «compreender-se-á facilmente que o jovem Alípio (...) se achava extremamente deslocado na companhia pobre e iletrada do pai» (pág. 33); esta repulsa é novamente evidenciada quando, já deputado, não aceita que os pais vão viver para Lisboa, muito menos na sua casa, com receio que «essa companhia plebeia» prejudicasse a sua imagem de homem público; a morte do pai na miséria, facto que foi alvo de aproveitamento político por parte dos seus opositores, leva o Conde a acreditar que o próprio pai tinha combinado isso com o deputado da oposição, para se vingar;
- o ódio pela pobreza: «a pobreza e os seus aspectos era-lhe odiosa», afastando «com dureza os pobres» que no Chiado lhe pediam esmola e ficando «todo o dia enjoado» se se aproximava deles (pág. 33);
- o seu conceito de solidariedade social - Alípio Abranhos apresenta na câmara de deputados um projeto equivalente a uma condenação dos pobres a uma pena de prisão perpétua com trabalhos forçados, pois este projeto pressupõe a recolha dos pobres em asilos, sem possibilidades de algum dia de lá saírem, para que não incomodassem, «com a sua face magra e com a narração exagerada das suas necessidades, as ruas da cidade» (pág. 34); para diminuir os custos que esta medida implicaria, o Conde propõe que «todo o pobre admitido seria forçado a uma considerável soma de trabalho, segundo as suas aptidões» (pág. 35);
- a visão bipartida da sociedade, composta por duas classes, a que governa (os bacharéis) e a que sustenta os que governam (os futricas); a primeira, porque detém superioridade intelectual, dispõe do mundo; a segunda produz, paga para que o bacharel possa viver e reza a Deus para que proteja o bacharel: «Dois mundos (...) que não se podem confundir e que, vivendo à parte, com fins diferentes, caminham paralelamente na civilização» (pág. 41);
- o projeto de reforma do ensino, da sua autoria, que defendia um ensino pela memorização, para que o espírito crítico não fosse desenvolvido e para que os estudantes se habituassem a aceitar, sem questionar, o que lhes fosse imposto;
- a hipocrisia com que resolve os seus casos amorosos pouco ou nada lícitos - durante o período em que frequentou a universidade, Alípio teve um relacionamento com Júlia, a jovem servente da casa onde estava hospedado; ao terminar o curso, abandonou-a grávida de três meses e quando soube que ela, tendo sido despedida pelos patrões por estar grávida, se entregou à prostituição «só concebeu por ela desprezo e repulsão» (pág. 51); já em Lisboa, Alípio teve um caso com «a mulher do Bento», apesar de conseiderar que nada existia de mais sagrado do que a família e de condenar qualquer situação de adultério; de acordo com a sua maneira de pensar, o seu relacionamento com «a mulher do Bento» não era imoral, porque se tratava de um casal modesto, logo o caso não andaria na boca do povo e não seria um exemplo pernicioso para a mocidade (para além disso, Alípio compensou o Bento, arranjando-lhe «uma posição numa repartição do Estado»);
- a "flexibilidade" política do Conde - enquanto colaborador de um jornal, modificou em poucos minutos um artigo, passando da crítica ao Governo ao elogio, quando o avisaram que o Governo atribuíra um subsídio ao jornal («Temos cheta!»); enquanto deputado do partido que estava no Governo, tendo percebido que o partido da oposição ganharia as eleições seguintes, mudou de partido, bastando-lhe, «com grande tacto político», subir à tribuna da câmara e proferir um discurso comovido onde se confessava triste por ver que o partido no Governo (o seu, até então) levava o país à ruína, sentindo-se, por isso, obrigado pela sua consciência, pelos seus princípios e pelo seu patriotismo «a separar-se dos amigos» cujo estandarte seguira; este golpe de génio valeu-lhe a promessa de um ministério quando o partido da oposição chegasse ao Governo;
- a ignorância - eleito deputado por Freixo de Espada à Cinta, uma comarca de Trás-os-Montes, promete que um dia visitará aquela «bela província do Minho» (pág. 117); designado Ministro da Marinha, assume o medo do mar e o horror a navios e comete a gafe de se referir a Moçambique como uma colónia situada na costa ocidental de África, para além de somente «depois de dezoito meses de ministro é que soube, por acaso, onde ficava Timor!» (pág. 190).
O universo da política portuguesa na segunda metade do século XIX (e no princípio do século XXI?), encimado pela nobre figura de Sua Excelência, o Conde d'Abranhos, não fica completo sem a referência a personagens como o Conselheiro Gama Torres que, segundo o narrador, era um «avaro intelectual» de quem «raras vezes se lhe tinha ouvido uma opinião nítida» (pág. 56), pois, para não fazer alarde das suas capacidades intelectuais («como fazem os franceses»), limitava-se a repetir a expressão «Ele há questões! Questões terríveis!».
Para além das personagens do mundo político, Eça presenteia-nos com uma galeria de personagens que fazem parte do círculo íntimo de Alípio Abranhos e que, por isso, rejubilam com a atribuição do Ministério da Marinha ao Conde:
«E o padre Augusto resumiu:
- Enfim, não é lá por dizer. Mas agora, estamos no poleiro!
- Quero dizer - acudiu - quando digo nós... os amigos sabem, é um costume que tenho. Sou tanto daquela família... Quero dizer, enfim, o nosso Alípio está no poleiro.
Então houve um momento de silêncio. Todos gozavam aquela ideia de que eles, os amigos, os íntimos, estavam no poleiro.» (pág. 188)
Evolução semântica da palavra "poleiro": cunhas, tachos, jobs for the boys.
Os íntimos da casa do Conde d'Abranhos são:
- o sogro, o desembargador Amado, cujo único deleite era comer, fazendo, «ao comer a sopa, um glou-glou nojento e repente, e atirava para o soalho os escarros que merecia na face» (pág. 66);
- D. Laura, a sogra, que, «de aspecto, dava a impressão de uma régua: esguia, chata, erecta, perpendicular» e que até ao dia da sua morte «rezou, imperturbavelmente, cronometricamente, com um tique-tique de relógio» (pág. 69);
- o padre Augusto, que «lançava baforadas de hálito, impregnado de alho» (pág. 69) e mostrava curiosidade por poemas eróticos;
- as manas Vitorino, «ambas magras, cor de cidra, de nariz acavalado, bandós achatados, com enfeites pretos» (pág. 72);
- o velho Serrão, «coronel reformado, com o seu espesso bigode grisalho, aparado à tesoura, a calça cor de flor de alecrim esticada pelas presilhas, ainda rijo, cheio de opiniões» (pág. 73);
- a D. Joana Carneiro, «triste e macerada, com o seu cirro no estômago, muito lamentada por todos, que admiravam a sua resignação, apesar de lhe censurarem o mau hálito» (pág. 73), preocupada em arranjar um tacho ao sobrinho bacharel;
- a D. Amália Saraiva, «cujos seios enormes pareciam dois pequenos odres» (pág. 73);
- o casal Fradinho, ela de «peito alto e penteado soberbo», ele «fincando no nariz a luneta de ouro ou retorcendo entre os dedos finos a ponta das suíças de azeviche» (pág. 74).
Em suma, a biografia do Conde d'Abranhos por Z. Zagalo é um excelente exemplar do estilo de Eça de Queirós: mordaz e sempre atual.